A terra do meu pai é uma pequena aldeia no coração da serra da Padrela, concelho de Vila Pouca de Aguiar, no distrito de Vila Real.

Todos os anos a 24 de Agosto faz-se a festa em honra de São Bartolomeu, um dos 12 apóstolos de Cristo.

Apesar de ser ele o santo padroeiro da terra, é Nossa Senhora de Fátima que nos recebe quando percorremos a estrada que dá acesso à aldeia.

Depois pela estrada de paralelepípedos de granito, vamos descendo até ao largo da fonte, onde nos aguarda um enorme e velho castanheiro que tantas castanhas deu, mas que morreu de pé.

E logo depois a nova capela, encostada à casa também agora recuperada da minha avó, a única pessoa de família nascida ainda no século XIX que conheci.

É muito pequenina a aldeia onde tenho as minhas raízes paternas.

É uma aldeia que mudou com os anos, desde logo nas casas construídas pelos que emigraram e que entretanto regressaram. De raiz, mantêm-se algumas das tradicionais casas da aldeia feitas de granito ou xisto, com paredes grossas, verdadeiras fortalezas aquecidas pelos animais que eram guardados na loja, sob os nossos pés.

É assim, ainda hoje, a casa da minha tia Alice, irmã mais velha do meu pai. Transmontana, rija, com os seus 97 anos.

A sua casa de pedra foi a que, tantas vezes, nos deu a cama, a mesa e os bons momentos em família.

Lembro-me de não haver electricidade. As noites de convívio eram feitas sob a luz difusa de um candeeiro a petróleo e, anos mais tarde, de um candeeiro a gás, potentíssimo, que iluminava todos os recantos.

Lembro-me que havia um único telefone na aldeia, que ficava precisamente na casa da minha tia Alice. Era o telefone comunitário a que todos recorriam, a que todos eram chamados.

Lembro-me muito bem da cozinha da minha tia Alice. Era a primeira divisão à esquerda logo ao cimo das escadas, também elas de pedra.

Na zona do lume, sobre o chão de pedra, colocavam-se os tarolos de madeira, que ardiam encostados às panelas de ferro de três pés, onde se cozinhava a sopa mais deliciosa de sempre, com umas batatas, ainda com o cheiro da terra, umas folhas de couve, um enchido caseiro e, ingrediente fundamental, a água que íamos buscar à fonte e que corria directamente da nascente, com uma frescura e pureza inigualáveis. Um sabor que hoje é difícil de alcançar.

Tudo tinha outro sabor… fosse nos cozinhados na panela de ferro, fosse no que colhíamos directamente das árvores. As deliciosas cerejas, vermelhas, gordas e doces… ou os cachos de uva morangueira, de um frutado intenso.

De sabores simples, mas intensos, se fazem as minhas memórias de conforto, dos tempos passados na Filhagosa.

Não esqueço também as experiências, mais ou menos aventureiras pela serra verdejante, onde me banhava com os meus primos em riachos de água gelada, que nos refrescavam do calor tórrido dos verões transmontanos de então.

Eram dias felizes e despreocupados.

Foi uma infância saudável com estas boas memórias, mas também a memória da minha avó “Marquinhas”. Sempre vestida de negro desde a morte do meu avô, nos anos 40, de cabelo branco, sorriso doce e voz meiga para os netos, tantos, filhos dos seus 9 filhos.

Tinha uma devoção incondicional por Nossa Senhora da Conceição.

Tenho bem presente a última vez que estive com ela. Veio visitar-nos a Lisboa no Verão de 1976. O meu pai conta que, nessa visita, ela me disse: “Ai minha netinha, a avó quando morrer vai pedir a Nossa Senhora da Conceição por ti“.

Coincidência ou destino marcado, acabaria por partir, meses depois, tranquilamente durante o sono, na noite de 7 para 8 de Dezembro, descendo o seu corpo à terra no dia da “sua” santa.

Não sei se a encontrou e se lhe pediu por mim, mas dá-me conforto pensar que sim.

Nesta viagem de memórias termino pelo início, pela primeira vez que fui à Filhagosa quando tinha apenas 9 meses. Era Agosto de 1968.

No primeiro Verão fora de casa, para ser apresentada à família, dificilmente os meus pais poderiam imaginar que seria aí que eu começaria a andar, mas ficou a foto para memória futura.

Ficou sobretudo o registo a preto e branco da alegria de uma bebé que bate palminhas, na excitação dos primeiros passos.

Com os pés na terra.

Firme.

De Trás-os-Montes.

É esta mesma aldeia que depois da matança do porco, no final de dezembro ou início de janeiro, coloca os enchidos no fumeiro bem a tempo de ficarem prontos por altura da Páscoa para se fazerem os folares.

Sempre preferi folares doces, como os da terra da minha mãe… mas deu-me uma vontade imensa de saber como é feito este folar transmontano que tantas vezes comi.

Tive de telefonar à minha prima Lurdes, filha da minha tia Alice. A Lurdes é cozinheira de profissão e quem faz sempre estes folares. Era ela a única que me poderia passar todos os pormenores.

Ela assim o fez… com toda a disponibilidade. E que bem que o fez.

Falou-me do tipo de farinha. T65 claro!

Da massa que “quanto mais batida melhor” e que deve levedar até começar a rachar.

Dos enchidos gordos de fumeiro. Na falta dos produtos originais, usei apenas um toucinho fumado e os restantes era o que tinha por casa. Chourição e paio.

Falou-me da importância de não cobrir totalmente a massa com enchidos para que ela possa crescer durante a cozedura.

Seja enrolada…

…seja no tabuleiro, com três camadas de massa e duas camadas de enchidos.

 E finalmente, deixou-me a recomendação para pincelar com ovo e colocar no forno assim que comece a querer levedar, para garantir que a massa não seca e cresce bem com o calor. Folares que levedam muito depois de montados, têm tendência a secar mais durante a cozedura. Faz todo o sentido!

Fiz tudo o que ela me recomendou… e não podia ter corrido melhor.

A massa ficou com uma textura extraordinária.

E o sabor… bom… à primeira dentada voltei atrás no tempo.

Mesmo sem os enchidos da Filhagosa, o sabor é maravilhoso e por isso, aqui estou, nesta época tão especial, a partilhar esta receita convosco, para que a possam fazer nas vossas casas e passá-la a quem a souber apreciar.

E desta forma aproveitei também este bocadinho para vos contar um pouco da minha história e das minhas raízes, que em muitos aspectos será semelhante às histórias de muitos de vós.

Este folar de carnes não falta nas mesas transmontanas durante a Páscoa.

Outras regiões do país assinalam a data com folares doces, como é o caso do FOLAR DOCE DE PÁSCOA e do FOLAR DE OLHÃO, ambos deliciosos e que também já estão publicados aqui no site.

Desejo a todos uma Santa Páscoa!

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