Estamos a cerca de um mês do Natal e por esta altura não falta uma receita de bacalhau, daquelas especiais como o Bacalhau com Broa ou o Bacalhau com Natas ou até o Bacalhau à Gomes de Sá Cremoso… perfeitos para servir na noite de consoada, sobretudo para quem não aprecie o tradicional bacalhau cozido com couves e batatas, tão típico em tantos lares portugueses.
Há muito que sabia que no site me faltava uma boa receita de Bacalhau Espiritual que não era tradição na casa dos meus pais, mas que é uma favorita do receituário nacional. No entanto, apercebi-me de que há tantas receitas diferentes que decidi começar a investigar as origens da receita, até que cheguei ao gastrónomo Virgílio Nogueira Gomes que confessa o seguinte:
Insurjo-me frequentemente pela designação menos correcta que é atribuída a alguns pratos. Por muito que custe aos improvisadores de culinária, há receitas que têm princípio, e uma história. A sua história.
E acrescenta:
Muitas vezes o que me servem não é seguramente um “Bacalhau Espiritual”. Porque não lhe chamam simplesmente “Empadão de Bacalhau”? É que, o que servem muitas vezes, é bom, mas não é “Bacalhau Espiritual”. (…) Portanto, quando não puderem servir a receita de acordo com os “cânones” correspondentes, o melhor é chamar-lhe outra coisa.
Apesar de ser improvisadora tantas vezes, também gosto de seguir originais, e foi o que fiz, até porque tenho o livro onde, segundo ele, está a receita mais correcta.
Como nasceu o Bacalhau Espiritual?
Foi em 1947 com a abertura do restaurante Cozinha Velha, da Condessa Almeida Araújo, um restaurante de luxo nas antigas cozinhas do Palácio Nacional de Queluz.
Este era um prato sofisticado cuja receita tinha sido trazida de França pela Condessa, que ali se havia deslocado para provar o que de melhor se cozinhava nos restaurantes de topo de então. Foi em Lyon que ficou especialmente impressionada com uma “Brandade Chaude de Morue”, ou Brandade Quente de Bacalhau. Ela terá pedido a receita, mas naquele tempo as receitas eram segredos bem guardados e, segundo revela o Virgilio Nogueira Gomes a receita foi-lhe vendida, mas não se sabe por quanto.
Há várias receitas de Brandade de Bacalhau consoante as regiões. A maioria usa puré de batata, mas nem todas. Umas usam leite, outras natas. Têm ainda alho, salsa ou outras aromáticas.
No caso do Bacalhau Espiritual, fosse a receita que veio de França, fosse uma receita depois adaptada, a verdade é que conquistou por cá os palatos mais exigentes.
Um prato económico?
Apesar das 8 gemas (!!!) que dão cor ao béchamel, diria que sim, já que com apenas 350 g de bacalhau se faz uma refeição para 6 pessoas. Os restantes ingredientes são de baixo custo. Até o queijo parmesão, usado apenas no topo para gratinar, não é nada do outro mundo e só se usa um pouco.
Não estranhem aqui os ingredientes, já que no dia em que fotografei e filmei fiz apenas meia receita.
Se não fosse para cumprir a receita original, certamente cortaria nas gemas, porque não senti grande necessidade de ter um béchamel tão amarelo. Mas aqui não quis fazê-lo.
Pronto em 40 minutos!
Descontando o tempo de reunir os ingredientes, sim. 40 minutos.
Começamos por colocar os papo-secos a amolecer em leite morno. A receita pede apenas o miolo, mas naquele tempo as carcaças tinham uma côdea mais forte, as de hoje são muito mais fraquinhas. Por isso vai tudo. Dependendo do tamanho podem ter de usar mais leite do que o recomendado na receita.
Seguidamente, está na hora de triturar a cebola, as cenouras e o bacalhau cru já demolhado… e nem precisamos de lavar a taça entre eles.
Se queremos uma textura cremosa, triturar bem é fundamental, mas sem reduzir a cebola e a cenoura a uma pasta. Isso é que não.
Depois refogamos a cebola e as cenouras, juntas, durante uns 5 minutos.
Envolvemos o bacalhau e o pão amolecido no leite (se tiverem usado mais leite, escorram o excesso).
Avançamos para o béchamel ao qual juntamos no final as gemas.
Metade do bechamel junta-se ao bacalhau que se transfere para um prato de forno. Alisamos o topo.
Por cima espalhamos o restante bechamel.
E polvilhamos com partes iguais de pão ralado, primeiro, e queijo parmesão, por último.
Só ficaram a faltar as nozinhas de manteiga por cima, por esquecimento meu… mas na verdade também não senti falta e acho que poderia deixar muita gordura no topo. No entanto, mantenho esse passo na receita escrita mais abaixo.
Daqui segue para o forno para gratinar a 200º C durante cerca de 20 minutos.
Como vêem é tudo muito rápido. Nesse tempo só temos de preparar uma salada de alface que é muito refrescante para acompanhar.
Aqui está, acabado de sair do forno. Apesar da cor amarela uniforme percebem-se claramente as duas camadas, sendo que todo o conjunto é muito cremoso.
Intolerâncias ou alergias
É sempre possível fazer alterações:
- Intolerância ao glúten – substituir papo-seco por pão de forma sem glúten. Substituir farinha de trigo por farinha pré-preparada sem glúten ou maisena. Tostar e ralar pão sem glúten para finalizar.
- Intolerância à lactose – substituir leite por leite sem lactose. Substituir manteiga por banha, azeite ou margarina (a manteiga contém traços residuais de lactose, o que não afecta por regra os intolerantes, mas deve ser evitada nos casos mais severos). O mesmo se aplica ao queijo parmesão com DOP (denominação de origem protegida), com menos de 1 miligrama por cada 100 g, que pode ser comido pela maioria, mas não nos casos muito severos.
- Intolerância à proteína do leite – substituir leite por leite de soja ou arroz. Substituir manteiga por banha, azeite ou margarina. Substituir parmesão por queijo vegano. Garantir que pão não tem leite na sua composição.
- Intolerância ao ovo – dispensar as gemas. Ficará um bacalhau mais branquinho. Se quiserem dar alguma cor amarelada, semelhante ao original, juntar um pouco de cúrcuma à farinha na hora de fazer o béchamel.
Nos tempos que correm, com o aumento destes casos de intolerância, podemos e devemos adaptar e mesmo assim conseguir não desvirtuar a receita.
Bon apetit!
17 thoughts on “Bacalhau Espiritual <br> (o original)”
Olá Clara de Sousa, entre tantas ofertas de receitas do Bacalhau Espiritual, escolhi a sua.
Ficou fantástica, inclusive congelei metade, porque acho que só dá para 4 pessoas, dado ser uma receita muito gulosa. Espero que quando descongelar esteja okay….logo se verá
Aprendi várias coisas consigo…como é hábito, a misturar o pão ralado com o queijo parmigiano e dividir o molho branco, porque pensei que era todo envolvido no bacalhau, ia fazendo asneira.
Muito obrigada pelas suas receitas. Um beijinho
Que bom Filomena. Outras receitas também ficarão muito saborosas mas a receita original é esta e eu também gosto muito 🙂 congela lindamente. Só não deixe muito tempo. Obrigada!
Olá, obrigada pela receita original!
Já há muitos anos que não faço esta receita, porque fiquei sempre desapontada com o resultado…creio que nunca me agradou pelo facto de a cebola ter de ser “triturada” em vez de picadinha à mão, com faca. Ao ser triturada, deitava muita “água”, e nunca refogava bem, ficava sempre um resquício de sabor a cebola crua, mal cozinhada, creio que era por isso que o prato não me sabia bem (detesto cebola crua!)
Aliás, na sua foto da cebola com a cenoura na frigideira, noto precisamente isso, uma cebola ainda muito branca, crua. Será talvez questão de a refogar com lume intenso, durante mais tempo, ou isso irá alterar/desvirtuar a receita original? Um destes dias, vou-me encher de coragem e tentar novamente! A ver o que vais air…
Cumprimentos.
Amélia Soares
Olá Amélia. A cebola é triturada sim mas não pode ser tanto que fique uma papa cheia de água, tal como refiro no texto. Se vir a minha ela está quase como se fosse picadinha à mão. No original ela não é muito refogada, até porque refoga com a cenoura, mas se gosta mais refogue primeiro a cebola e quando ela estiver como gosta junte a cenoura até ela amolecer. Mesmo desvirtuando um pouco deve adaptar ao seu gosto, só assim faz sentido 🙂
Muito obrigada pelas suas partilhas de receitas que aparentemente difíceis, pela forma tão explicita que as descreve e mais um vídeo a acompanhar tornam-se fáceis de cozinhar. Um abraço e muito sucesso.
Obrigada Leonor! Feliz Natal!
Adoro as suas receitas. Já há bastante tempo que a sigo, mas infelizmente não me resta o necessário para poder passar tantas horas na cozinha. De qualquer modo sempre que posso e sei procuro fazer da melhor maneira seguindo os seus conselhos que, para mim, são essenciais.Obrigada
Muito obrigada Camila 🙂
Olá Clara, já experimentei algumas receitas de bacalhau espiritual e sempre ficaram demasiado secas e a saber mais a pão do que a bacalhau. Mas a pergunta que queria fazer é se existe alguma forma de deixar a receita pré preparada, ou se eventualmente dará para congelar antes/depois de ir ao forno, porque atraso me sempre com o jantar nesse dia…
Inês, o bacalhau espiritual pode ser congelado mas eu receio sempre pelo resultado final. Por um lado, tendo duas camadas, receio que o tempo que leva até congelar acabe por fazer com que o béchamel de cima penetre na camada de baixo. Depois estando congelado e sendo colocado no forno não sei se os 20 minutos chegam para o descongelar por dentro. Como temos aqui o problema das camadas o que eu faria seria: faria toda a mistura previamente e apenas metade do béchamel para essa mistura. Colocaria num tabuleiro, cobria e congelava. Depois, na noite anterior deixava descongelar no frigorífico. Mais perto da hora de servir faria o restante béchamel e só nessa altura colocaria por cima e sem tempo de espera, iria logo para o forno. Em 20 minutos estaria pronto como se tivesse sido tudo acabado de fazer. Só com isto já ganha algum tempo. Em última análise até pode usar bechamél de compra. Espero ter ajudado.
Olá Clara de Sousa.
Ao decidir fazer bacalhau espiritual optei pela sua receita porque sei que são sempre ótimas, fiquei surpresa ao saber de onde a Clara a retirou, é que tenho esse livro ( já velhinho) mas que é maravilhoso só não me lembrei dele.
Já fiz, ficou maravilhosa, apenas dei um toque pessoal, um vício que tenho adicionei miolo de camarão e não fiz com o bacalhau cru, uma vez que tinha que cozer os camarões aproveitei e dei-lhe uma fervura
Obrigada pelas sempre ótimas receitas, beijinho.
Não há muitas pessoas que tenham esse livro, por isso guarde-o com carinho porque é mesmo uma relíquia 🙂 que bom. Adaptou ao seu jeito e não há nenhum problema nisso. Obrigada!
Bom dia, adorei saber a história desta receita bem apetitosa. Vou seguir a receita mas opto por reduzir a quantidade de ovos e retirar a manteiga, como sugeriu. Obrigada, Clara beijinhos
Muito bem, o que é preciso é adaptar às necessidades.
Admiro o Risco de ter escolhido associar uma Profissão de tão Grande exigência com a culinária, Requintada, que divulga. É por isso que leio os seus mails. Boa sorte!
Olá Clara! É mais ou menos assim que faço o bacalhau espiritual e, sim, o original é o da Cozinha Velha.
Na receita que tenho há muitos anos, apenas faço duas coisas diferentes:
Uso um pão mais saboroso do que a carcaça (alentejano, mistura, etc) e na metade do béchamel que vai por cima do bacalhau, junto 1 ou 2 claras em castelo, consoante a quantidade.
A superfície fica maravilhosa, fofa e mais cremosa.
Fica a ideia ….
Beijinho
Eu conheço essa adaptação das claras. Mas é uma adaptação. Uma das muitas que foram feitas. Até podem ser melhores do que o original mas no início não havia claras, havia apenas gemas. ☺️